E ela olhou nas suas anotações o nome de todos eles. Tinha ficado encantada com todos os relatos e sobre como toda aquela gente tinha dedicado a vida por uma causa. Mas ainda se assustava um pouco também. E, naquela noite, foi deitar pensando em cada um deles. Afinal, tudo era tão grandioso, tão importante, tão solene... Tão distante. Ela ali, no trabalho comunitário, todo fim de semana, na busca de vida, no convívio com outros jovens... E eles lá. Fazendo grandes coisas, sonhando grandes sonhos...
E de repente ela se pega andando numa rua estranha. Não parecia com nenhuma outra pela qual já caminhara. E então ela vê uma igreja e tem a forte vontade de entrar nela. Há poucas pessoas sentadas e no altar um bispo faz um discurso muito convicto. Dizia ele que “Ainda quando nos chamem de loucos, ainda quando nos chamem de subversivos, comunistas e todos os adjetivos que se dirigem a nós, sabemos que não fazemos nada mais do que anunciar o testemunho subersivo das bem-aventuranças, que proclamam bem-aventurados os pobres, os sedentos de justiça, os que sofrem”
Ela achou aquilo muito forte, mas o bispo continuava: “Uma igreja que não sofre perseguição, mas que desfruta privilégios e o apoio de coisas da terra – Tenham Medo! – não é a verdadeira igreja de Jesus Cristo.” E ainda continuava: “Para que servem belas estradas e aeroportos, belos edifícios e grandes palácios, se foram construídos com o sangue de pobres que jamais vão desfrutá-los?”
Ela foi caminhando até o altar, mas aquela pregação havia acabado. Uma a uma as pessoas deixavam a igreja e ela pôde ver alguns rostos conhecidos. Uma mulher baixinha se reunia em círculo e conversava com outra de cabelos grisalhos e com outros dois homens, um de bigode e o outro de barbas e óculos.
A mulher baixinha dizia: "é melhor morrer na luta do que morrer de fome" ao que a mulher de cabelos brancos acrescentou: “Não vou fugir e nem abandonar a luta desses agricultores que estão desprotegidos no meio da floresta. Eles têm o sagrado direito a uma vida melhor numa terra onde possam viver e produzir com dignidade sem devastar”.
Ela sentiu que a luta e a vida eram a marca forte desta conversa. Então o homem de bigodes disse: “Se descesse um enviado dos céus e me garantisse que minha morte iria fortalecer nossa luta até que valeria a pena. Mas a experiência nos ensina o contrário. Então eu quero viver. Ato público e enterro numeroso não salvarão a Amazônia. Quero Viver”. A mulher baixinha respondeu logo em seguida: “Se a gente morrer nesta luta, o sangue será uma semente. Vamos conquistar a justiça! A história não falha, nós vamos ganhar”.
O homem de barba estava calado até então. Observava tudo e quando surgiu a oportunidade disse: “Agora, quero que vocês entendam o seguinte: tudo isso que está acontecendo é uma consequência lógica do trabalho na luta e defesa dos pobres, em prol do Evangelho, que me levou a assumir essa luta até as últimas conseqüências. A minha vida nada vale em vista da morte de tantos lavradores assassinados, violentados, despejados de suas terras, deixando mulheres e filhos abandonados, sem carinho, sem pão e sem lar”.
A garota se afastou. Até então ninguém falara com ela, ninguém notara a sua presença. E ela caminhava assim, solta em seus pensamentos até que acabou tropeçando em alguém. Era um amigo seu, padre, militante dos direitos humanos e perseguido por denunciar abusos do poder público e policial. Ela não se conteve e o questionou:
- Eles fizeram tanto, são tão famosos, com grandes projetos. Eu me sinto pequena ao não abraçar a causa como eles.
- Seu empenho é diário, não é? Você não consome seus finais de semana, por semanas a fio? Você não se empenha na formação de novas lideranças? Não acompanha novos grupos? Não festeja e se reúne, discute e reflete com outros jovens? Por que sua luta seria menor, então?
- Ah! Mas todos eles são muito corajosos por enfrentar a morte, por se doarem desta maneira, por serem profetas na busca de vida digna do povo. Eles não têm medo?
- Não é o medo, mas o enfrentamento ao crime que terá chance de diminuir essa força dos ‘passageiros das trevas’ que, desde sempre, compactuaram com a exigência do silêncio, do segredo, do medo e do oculto para poderem sorrateiramente ganhar mais.
- Mas eu sei que isto é um sonho. E que eles já morreram. Todos eles. E que apesar disto, as injustiças continuam. Por que vale a pena continuar lutando?
Ele inclinou a cabeça de lado, olhou em seus olhos e disse:
- Quem te falou que eles morreram? Os mártires da caminhada continuam vivos em quem tem o coração ardendo. Quem se comove e se motiva ao ler a vida de Dom Oscar Romero, Margarida Maria Alves, Irmã Dorothy Stang, Chico Mendes ou Padre Josimo, entre tantos outros, e leva adiante sua ação faz com que a morte de nenhum deles tenha sido em vão. Você acha que Jesus continua morto?
Mas ela ainda tentava argumentar:
- Mas e as injustiças? Elas continuam.
- Nenhum de nós entrega a vida só pela justiça. É por amor. Só por amor.
"Teu nome é santificado naqueles que morrem defendendo a vida."
ResponderExcluir(Pai Nosso dos Martires - Zé Vicente)