sexta-feira, 30 de maio de 2014

Uma pedra no meio do caminho

Já faz algum tempo que esta história vem remoendo dentro de mim. Quantos outros grupos poderiam se identificar com esta parábola? Quantos passam por situações parecidas? Quando eu a contei pela primeira vez, as pessoas logo associaram ao poema de Carlos Drummond de Andrade e também a superação pessoal diante dos problemas. Mas não era este o objetivo.

Entenda o contexto: era um grupo que estava fadado ao fracasso. Isolado, sem perspectiva. Pediram ajuda. Fomos contribuir. O texto abaixo era uma provocação para eles. Era um ponto de vista sobre a história que viviam. E não está exatamente como eu a contei. Há sim algumas adaptações, acréscimos e firulas. Mas a ideia principal continua aí. Será que você conhece grupos que se identificarão com Tiago?

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Eu não sei o nome daquele jovem. Talvez por ter vivido num tempo muito distante e num lugar muito remoto, seu nome soasse muito estranho. Resolvi então chamá-lo de Tiago. Nome moderno, eu sei. Mas me ajuda a criar familiaridade. Quase todo mundo conhece um Tiago. E as pessoas podem se identificar mais com sua história.

Tiago morava numa aldeia. Mas na sua casa, só ele habitava. Era uma aldeia relativamente grande. Ele morava numa das pontas. Hoje, diríamos que ele morava na periferia, mas a comparação não cabe bem aqui. Se bem que quando chovia, a terra enlameava muito mais perto da casa de Tiago do que no restante da aldeia. 

Tiago era sozinho. E não porque fosse tão mau para que os outros não se aproximassem dele ou que gostasse da solidão. Ele simplesmente não se enturmava. Ninguém percebeu, mas ao longo do tempo Tiago foi se fechando a cada dia até que ficou doente de tristeza.

Sua atitude não era comum e acabou chamando a atenção do curandeiro do clã. Este foi visitá-lo duas ou três vezes e concluiu: para que fosse curado, ele precisava caminhar. Um pouco a mais a cada dia que se passasse. Após dezoito noites, o curandeiro voltaria.

Desconfiado da receita, mas acreditando na sabedoria do curandeiro, na manhã seguinte Tiago passou a caminhar. Nos primeiros dias não sentiu grande diferença. Pensou até em abandonar o processo. No entanto, o respeito pelo curandeiro era grande e ninguém ousaria contrariá-lo.

Pelo sétimo dia, sem ter mais um lugar perto para avançar a caminhada, Tiago resolver seguir numa trilha pela floresta. Não se costumava andar por lá, mas ele sentiu que era agradável caminhar por meio das árvores. O calor não era tanto, a mata não era fechada e o lugar convidava a avançar.

No oitavo dia, ele voltou à floresta e avançou mais. Chegou num ponto onde havia uma subida na trilha. De um lado subia um morro íngreme, do outro, um descia um desfiladeiro que assustava. O que em outros tempos deixaria Tiago amedrontado não aconteceu desta vez. Embora a trilha fosse estreita, era bem comprida. Ele, no entanto, atravessou tranquilamente.

Avançou, avançou e foi ouvindo um barulho forte de água. Avançou ainda mais. E descobriu de onde vinha tudo aquilo. Era a queda d’água mais bela que ele já vira e que não se comparava a qualquer outra das quais ele já ouvira relatos. Ele entrou no rio e foi sentir a pressão da queda. Por instantes nada mais o perturbava. Ele estava em paz. Feliz e em paz.

Teve que voltar a sua casa. E refez o mesmo percurso por outros três dias. Entrou na floresta, caminhou pela trilha, passou pelo desfiladeiro e chegou à cachoeira. E em todas as vezes ele pode sentir a mesma sensação de felicidade. Passou a acreditar que ali era a morada dos deuses e que eles decidiram compartilharam daquele lugar com ele.

No décimo segundo dia ele refez novamente os mesmos passos. Entrou na floresta e caminhou pela trilha. Mas ao chegar no meio do desfiladeiro interrompeu sua caminhada, espantado e perplexo. Não havia como prosseguir. Uma enorme pedra estava ali no meio do caminho. Não havia passagem nem pela esquerda e nem pela direita. Era impossível contorná-la.

Tiago se prostrou diante da pedra. Seria um sinal de que os deuses não o queriam mais ali naquele refúgio? A angústia se abateu forte sobre o rapaz. Ele recitou todas as rezas, todos os mantras, todas as invocações que conhecia. Por horas ficou ajoelhado, esperando que algum sinal divino se aplicasse àquela situação. Rolou na terra, humilhou-se, aplicou a si próprio as marcas de flagelação. A pedra não se mexeu.

No décimo terceiro dia ele voltou. Levava consigo um animal para o sacrifício. Armou um pequeno altar diante da pedra. Era costume entre seu povo agradar aos deuses sacrificando a vida de uma oferenda sem mancha ou defeito. Todavia, no lugar em que a pedra estava ela permaneceu. Triste, ele voltou para casa.

Naquela noite Tiago teve uma inspiração. Partiu na manhã seguinte, logo cedo, para a floresta e para a trilha, carregado com travas e cordas. Se não era possível passar pela esquerda ou pela direita, a solução era passar por sobre a pedra. Com sua engenhosidade juvenil e esforço desmedido, ele conseguiu se lançar por cima da pedra, escalando-a com o auxílio destas travas e cordas. Deixou tudo armado para a volta e para os dias seguintes.

Ele conseguiu voltar a ver a cachoeira. Sentiu-se aliviado e renovado ao entrar em suas águas. Um vigor vibrou em seus ossos ao perceber que vencera o desafio da pedra no meio do caminho. Vencera sozinho. Será que tudo isto estava previsto pelo curandeiro ao lhe receitar as caminhadas? Saberia ele a respeito da cachoeira? Seria possível que soubesse que uma pedra estaria no caminho e que ele se sentiria desafiado a superá-la?

Por outros três dias ele repetiu novamente este trajeto. No retorno, porém, ao escalar a pedra, perdeu o equilíbrio e caiu. Por muito pouco não sofreu desfiladeiro abaixo. Caiu na trilha. Quebrou o braço. Tão cedo não poderia voltar. Que sinais eram estes? Por que aquilo lhe atingia desta maneira?

Tiago arrastou-se para casa. Já era noite. Chovia. Perdido com dores e no meio da floresta, acabou chegando em sua aldeia, junto ao seu clã, logo ao amanhecer. Diante de sua casa, rua e corpo enlameados, deparou-se com o curandeiro que o esperava. “Passadas dezoito noites”, disse ele. Ervas ele trazia. Água quente estava ao fogo. Lavou e limpou o jovem. Imobilizou o braço de Tiago e fez com ele bebesse os chás que preparou. Questionou-o sobre as mudanças que sofrera e se aquela caminhada o havia feito se transformar.

O jovem sentiu uma nova revelação brotar em seu peito. Tudo aquilo havia começado porque se sentia só. E solitário ele travara todo aquele processo. Sozinho ele caminhara, sozinho descobrira a cachoeira, sozinho ele se prostrara perante a pedra que atrapalhava o caminho, sozinho ele superara a dificuldade e sozinho ele estava quando quebrou o braço. Não precisaria ter sido assim. Se outros o tivessem acompanhado desde o início, tudo poderia ter sido diferente. E contou ao curandeiro toda a história e as conclusões que chegara.

Na manhã do dia seguinte, novamente o curandeiro estava diante da casa de Tiago. Desta vez, no entanto, ele estava junto com um grupo de jovens da aldeia. Ele perguntou se o jovem não aceitaria guiá-los até a trilha da cachoeira. Ao observar as mãos dos jovens, Tiago logo entendeu o porquê. Eles carregavam instrumentos e ferramentas. Iam remover ou quebrar a enorme pedra.

Trilha feita, caminho percorrido. Por um dia inteiro trabalharam na pedra. Ela foi reduzida a pedregulhos. Todos puderam passar. Todos puderam conhecer a cachoeira. A paz individual e a felicidade pessoal que Tiago havia sentido dias antes era agora compartilhada. Era um estado de paraíso, de bem estar com os deuses muito maior do que ele havia sentido antes.

Tiago voltava para casa pensando no bem que era partilhar os conhecimentos e as vivências. Pensava também que teria sido impossível para ele superar as dificuldades sem a ajuda dos outros jovens e sem a presença amiga do curandeiro. O trabalho articulado e organizado de todos arrancaram-no de seu estado de tristeza e desânimo. Seus pensamentos se somaram às lágrimas de felicidade quando percebeu que, diante da sua casa, a antiga rua enlameada estava coberta com os pedregulhos recolhidos da trilha pelos outros jovens. Definitivamente, Tiago não se sentia mais só.

Um comentário:

  1. Meu querido! Que belo texto! Inspira muitos pensamentos e vontades! Obrigado pelo presente !

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