quinta-feira, 6 de agosto de 2020

Não é coincidência

Ele vinha caminhando pela avenida. Na sua cabeça vinham todas as obrigações que precisava fazer do outro lado da cidade. Máscara no rosto, álcool gel no bolso. Há dias não saia de casa para nada. Pelo menos ele poderia sentir a brisa matinal quando passasse pela ponte sobre o rio.

Quase ninguém na rua. Sua surpresa, no entanto, foi perceber que naquele vazio de pessoas havia uma figura solitária na calçada, parada em pé ao lado da mureta lateral da ponte bem no meio do caminho. Ela estava concentrada, olhos fixos no horizonte. Ele pode perceber isso, pois, a cada passo que dava, aquela pessoa se mantinha imobilizada.

A distância e a idade não permitiram que ele reconhecesse logo a pessoa. Mas a medida que se aproximava, não lhe restaram dúvidas. Era a “menina” Érica, dos seus tempos em que ele era assessor e ela do grupo de jovens. Vez ou outra eles se falavam por mensagens no celular. A graça de tudo é que ainda se referiam um ao outro como “menino” e “menina”, embora ela estivesse na casa dos 30 e ele na dos 40.

Ele enfiou a mão no bolso e puxou um cartãozinho desses de apresentação. Havia um textinho escrito nele e uma imagem infantil de um tatu. Ele se aproximou de Érica lentamente. No entanto, mesmo que ele tivesse vindo com algum estardalhaço, ela continuaria ali, imóvel em seus pensamentos.

- Menina, tome aqui. Este é o Tatu do bem. Não importa se seu dia de ontem não rendeu. Hoje é um novo dia cheio de oportunidades.

Esse era o textinho escrito ao lado do tatu infantil. Ele permaneceu poucos segundos parado com o braço levemente esticado até que Érica percebesse que a “menina” era ela e que ele era seu antigo assessor. “Não te vi chegado, menino”, foi o que ela pode lhe dizer antes de olhar com mais atenção ao cartãozinho que ele lhe ofertara. Ela parou, leu, respirou. Olhou atentamente para ele e disse:

- Você agora lê pensamentos?

- “Comecei um curso a distância, mas não concluí”, disse ele rindo e completando. A internet em casa é horrível. Mas, falando sério agora, em nossa última conversa você falava sobre desânimo e ao te ver hoje aqui, parada, foi muita coincidência eu ter esses cartõezinhos aqui no bolso.

- Obrigada. Eu precisava disso. Vem tudo dando errado comigo ultimamente, você sabe. Hoje eu acordei bem mal. Então eu resolvi vir aqui.

Ao perceber o movimento dela em direção ao muro da ponte, contrariando todas as recomendações médicas, científicas e televisivas, ele tocou no ombro dela, fazendo com que ela retornasse e novamente mantivessem a conversa cara a cara. Então a abraçou.

- O que te aconteceu desde a nossa última conversa, menina?

- Eu não estou dando conta da minha vida, menino. Na terapia ontem fiquei esgotada. Não está dando certo. Acho que deveria ser feliz e não sou. Estou acomodada. O emprego, a família, a vida social totalmente reduzida. Nada. Não consigo nem sonhar. Estou sobrevivendo. Não sei o que querer da vida. E os dias vão passando assim, sem reação, sem alegria, sem emoção.

Ele não piscava. Olhava fixamente para ela, enquanto seguravam as mãos.

- Eu acho que preciso reagir. Não. Eu sei que preciso. Busco isso em várias coisas. Mas eu não sei como fazer. E no fundo, acho que alguém vai me salvar disso.

- Você acha ou você quer?

- Na verdade queria mesmo. Mas porque descobri que eu sou dependente emocional de algumas pessoas. Depois que terminamos o namoro, eu sofri muito. E saber que em menos de um ano ele se casou com outra pessoa, dói. Mas sei que preciso crescer. E pra isso preciso tomar minhas decisões sozinha. Mas isso machuca muito.

- Claro que dói. E claro que vai te deixar marcas. E não tem jeito. Passar pelo que você passou e tem passado é obstáculo que não é para poucos. E sei que para vencer tudo isso que disse é preciso se amar, se gostar e se dar bom consigo mesma. E, olha, isso não é autoajuda.

- Eu sei que não. Mas como é difícil.

Ele soltou as mãos, fez um gesto pedindo para ela esperar. Enfiou a mão em outro bolso, sacou o celular e procurava avidamente alguma mensagem.

- Olha aqui. Essa aqui uma amiga do sul me mandou.

E o texto dizia assim:

"Meu maior medo?
Acordar e perceber que não me apaixonei por nada nos últimos dias.
Nem por algo que fiz,
Nem por um sorriso 
Por uma música que ouvi, 
Pelo prazer de voltar pra casa,
Por uma boa conversa,
Pelo silêncio,
Ou pela liberdade de poder ser eu mesma.
Morro de medo de não me apaixonar diariamente e perder a graça em me sentir viva"

Ele guardou o celular e um brilho iluminava o seu sorriso. Ela ainda permanecia séria enquanto ele dizia:

- Volte a pintar. Faça de novo aqueles artesanatos maneiros que você fazia antigamente. Ou melhor ainda, volte a escrever. Você tem um ótimo olhar da realidade. Fale de você, do que está vivendo, dos seus medos e fantasmas. Quando a gente diz o nome deles, dos fantasmas, eles perdem a força e param de nos amedrontar. Já falei disso com você. Use todo o seu perfeccionismo na escrita.

- Aí é o problema. Eu travo porque sinto que não sou boa.

- Mas você é. Muito. E você não precisa se sentir incompleta ou dependente. Pode se sentir assim às vezes. Pode até parecer que isso é verdade, mas não é. Não o tempo todo e nem a maior parte do tempo.

- Não sei se tenho jeito.

- Uma outra amiga me disse que ninguém além de nós mesmos podemos nos salvar! Mergulhar lá no fundo e nos salvar! Ela disse algo mais ou menos assim: “A gente não foi ensinada a se amar, a se salvar, a montar o cavalo  matar nós mesmas os dragões. A gente é ensinada a ser Cinderela, Ariel, Branca de neve e não a Mulher Maravilha, Mérida, Elsa ou mesmo a Malévola. Somos criadas para esperar, servir e cuidar”.

- Eu realmente fiquei bem sentida com o término do namoro. Só não esperava que fosse tanto assim.

- Esse amor que a gente sente por um namorado, namorada, marido ou esposa é importante, mas não se pode esquecer das demais dimensões. Claro que é bom amar, ser amado, todas essas trocas, mas isso não significa que não podemos amar também os amigos, familiares. Não precisa ter hierarquia Porque aí quando acaba essa dimensão, nossa!! O mundo parece que acaba junto.

Agora é ela quem para e olha fixamente nos olhos dele e repete, partindo dela a iniciativa e quebrando novamente o protocolo, o gesto não recomendado de se abraçarem fortemente. E durante o abraço, ele diz:

- Acredite. Você é competente, dedicada, cuidadosa, amorosa, detalhista e ética. Isso só no aspecto das suas relações. Se fosse falar do aspecto pessoal ainda teriam outros tantos adjetivos. Além de tudo isso, você é do bem!

- Obrigada por perceber tantas coisas em mim. Gratidão Por me ouvir e me ajudar.

- Esse trabalho é fácil. É só jogar um pouco de luz onde está sombrio e ver todas as belezas que você tem, que você é e que você faz. Mas não fica parada aí não. Eu estou indo para lá resolver umas coisinhas. Quer ir comigo?

Seguiram juntos, rindo e talvez falando das memórias do passado, talvez falando de sonhos para o futuro, mas com o coração leve no presente.

Um comentário:

  1. Texto maravilhoso, como sempre.

    Nunca deixe de nos presentear com eles.

    Obrigada.

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