quarta-feira, 7 de outubro de 2020

Algumas questões sobre identidade

Lá estava eu novamente. Era um encontro da PJ. E não era um encontro corriqueiro. Era um grande encontro. Muita gente que lá estava, eu não conhecia. Lembro de quando estávamos todos do lado de fora, conversando, num momento de intervalo, aquela hora em que tem o cafezinho e a gente também usa como um bom momento de interação. Eu observava tudo atentamente. No momento seguinte, já dentro do salão, estávamos quase todos nós sentados nas cadeiras num formato semelhante a dois semicírculos, um mais próximo de quem falava e outro imediatamente atrás. Eu estava no fundo.

Quem falava lá na frente era a Dai Zito. Muita gente na PJ conhece a Dai. Muita gente fora, também. Isto é um fato que não causa surpresa a ninguém. Ela fala e fala bem. No entanto, no meio da sua fala eu tomei um susto ao ser citado em um exemplo que ela deu. O que me surpreendeu não foi ser citado pela Dai, o que a princípio foi bem bacana, mas o teor da fala. Era um tanto legalista. 

Dizia ela algo mais ou menos assim: Se o Rogério mora na rua tal (e falou o nome da minha rua), sabemos que essa rua pertence a (diocese de) São Miguel. Agora, se o governo (e não sei de qual governo a Dai estaria falando) disser que a rua tal pertence à Região da Brasilândia, o Rogério passa a ser da Brasilândia também, independente de todo o histórico dele em São Miguel.

Aqui cabe uma explicação. Quem conhece a geografia daqui de São Paulo vai saber que a diocese de São Miguel Paulista, onde estou, não é vizinha da Região Brasilândia, onde a Dai mora. Embora estejamos no mesmo município, cada um destes cantos fica num dos extremos, nas periferias desta cidade.

Como eu disse, eu estava sentado no semicírculo de trás. Aquela fala da Dai ficou me causando pensamentos. Sei que o exemplo da fala dizia respeito a mim, mas não sei porque logo eu fui pensar no Thiesco. Ora, o Thiesco tem sua história pastoral ligada ao Pará, mas agora ele mora no Paraná. Esse pensamento se aplicaria a ele? Como eu devo me referir ao Thiesco? Thiesco do Pará ou Thiesco do Paraná?

Na primeira fileira, logo a minha frente, estava sentado o Marcos Dantas, que também muita gente conhece. Eu o cutuquei e compartilhei com ele este apontamento. Ele prontamente me respondeu de forma bem simples e direta: “Você pode se referir ao Thiesco como o ex-secretário nacional da PJ”.

Aquilo não me aquietou. Pelo contrário, ele me deixou com mais questões. Referir-se ao Thiesco como antigo secretário nacional da PJ diz respeito ao que ele foi, não ao que ele é. O que fizemos, claro, contribuiu para o que somos hoje, mas também é passado. Se eu sou conhecido somente pelo que fui, o que eu sou hoje?? Nesse momento senti uma pontada forte na barriga. E acordei.

Sim, todo este relato foi um breve episódio num sonho maior, totalmente desconexo deste contexto e do qual eu não me lembro detalhes. Foi há alguns dias. E eu fiquei a pensar no que isto significaria. Pessoas normais sonham que estão voando, comendo, nadando, caindo, indo à praia, à montanha, à casa de amigos, livremente, sem máscaras. E eu aqui sonhando com questões existenciais.

Partilhei este sonho com os três envolvidos. Fato estranho é que quem os conhece sabe que a Dai não é legalista, o Marcos está longe de ser simplista e o Thiesco não é de ficar incomodado com estes referenciais geográficos, em razão do tanto que já caminhou.

Na conversa que tive com eles e ela, acabou sendo impossível não associar alguns aspectos deste sonho com questões diretamente ligadas à Pastoral. De tudo que conversamos e daquilo que venho pensando daquele dia para cá, dois pontos são mais fortes:

1- O que as normas ou leis dizem de nós, falam do que realmente somos?

2- O que fizemos ou fomos no passado diz o que somos hoje?

Se eu fosse o Marcos Dantas do sonho (fique claro: o do sonho!), eu diria simplesmente NÃO para as duas perguntas. Mas vamos nos aprofundar um pouquinho mais. Voltando ao exemplo do sonho, se São Miguel Paulista passasse a fazer parte da Brasilândia (o que geograficamente não é viável), a lei não mudaria quem eu sou. Minha contribuição vem daquilo que vivi, fosse na diocese, na paróquia ou no Regional. O nome de onde estou é um fato que se soma à minha história. Mas eu posso e tenho toda a liberdade de assumir isso ou não. É uma escolha. Sempre foi. Adaptar-se a uma nova realidade pode ser questão de sobrevivência ou de resistência. Tudo depende dos valores identitários que estão em jogo.

Sabemos que em termos pastorais, a força da lei, da nova (ou velha) norma diz por onde seguem as mudanças. Mas a lei não precisa mudar o que somos, como já falei. É uma escolha. Quando a direção, o governo, a orientação pastoral muda, isto significa que algo que podia antes, não pode mais (ou vice-versa), algo (ou alguém) fica ou sai, enquanto outras tantas coisas se transformam. A isto, os grupos de PJ podem e devem se adaptar até onde os valores que carregam em sua história permitirem. 

Por exemplo. É possível perfeitamente fazer uma atividade com este ou aquele grupo que não está alinhado à nossa prática pastoral. O que gera barreira é quando se tenta diretamente atacar, barrar ou mudar valores essenciais, como o protagonismos juvenil (agora são adultos que coordenam grupos de jovens), a formação integral (aqui não se trata mais de questões sociais) ou a ética pastoral pela apropriação e mudança do discurso narrativo.

Aqui cabem mais algumas palavrinhas. Apropriar-se do nosso discurso e mudá-lo, suavizá-lo ou resumi-lo é eticamente inadmissível. E neste aspecto não cabe adaptação. Quando a mudança chega (e ela sempre chega) ignorando nossa história, nossos valores, não se pode simplesmente aceitar. Quando ouvirem discursos supostamente pastorais tentando minimizar, justificar ou ignorar fatos importantes como a vida da juventude em situação de risco, ou o silenciamento das vozes mais jovens, ou qualquer tipo de discriminação, geral ou específica, ou ainda enxergarem as estruturas pastorais e eclesiais como escadas para um status, tem coisa errada e é preciso resistir. A PJ não compactua com nada disso. Mesmo que legalizadas pela ordem vigente, não dizem a respeito de nós.

Porém, e já fazendo a ligação com o ponto dois citado acima, isso não significa que toda mudança é ruim. Não mudar é deixar o tempo apodrecer aquilo que aparentemente parecia firme. A mudança, pois, é necessária para viver. Mas só se mantém relevante quem muda para ser fiel a princípios.

Ou seja, ficar preso ao passado é a mesma coisa que condenar a si próprio como algo obsoleto, no máximo digno de apreciação histórica. Isto não significa que o passado não vale nada. Assumir este pensamento é um erro, como o de alguns sacerdotes que vi utilizando deste discurso para falar que o Método Ver Julgar Agir é uma peça de museu. Ou isto foi má fé ou ignorância porque o "Ver Julgar Agir" é um método extremamente utilizado na Igreja e em constante atualização, seja pelas ciências que ajudam a analisar a realidade, seja pelas reflexões do Magistério ou ainda pelas práticas adotadas para enfrentar cada problema específico.

Ou seja, a gente não é simplesmente só aquilo que fomos no passado. Hoje eu não sou mais o Rogério que foi assessor da PJ do Regional Sul 1. Aquele foi um Rogério que viveu suas histórias e que ajudou a compor o Rogério do presente. O que fui não se apaga, não se subtrai, mas se acrescenta a tantas experiências. Da mesma forma é o Thiesco do sonho. Ele foi Secretário Nacional. Hoje ele está além de ser um ex-secretário. O que ele viveu naqueles três heróicos anos é parte do que ele é hoje.

E isso também acontece com a PJ. Ela não pode ser vista e vivenciada como era há 10 anos. É outra hoje. A realidade, em especial por conta desta pandemia do Covid-19, faz com que novas experiências sejam avaliadas e criadas. O que se fazia no passado precisa passar pelo crivo do tempo que se renova. E junto com o tempo, a juventude também se modifica. Valores ficam, a realidade muda.

A gente não pode se prender à letra do passado, mas sim aos valores essenciais que nos fizeram escolher aquilo que somos e aquilo que defendemos. Isso faz com que a PJ seja a mesma em diversos cantos do país e seja múltipla no sentido de suas culturas regionais, práticas pastorais e em sua própria história, sendo sempre uma só força, um só pensamento e um só coração. E que Deus seja louvado por isso.

2 comentários:

  1. Que excelente reflexão, me encontrei muito neste texto, nesta reflexão neste sonho.. Fiquei 40 dias fora de orbita com covid 19 num hospital de campanha, e nestes dias fiquei pensando no Eder que fui, na caminhada que fiz, e imaginava mas não sabia qual Eder ia sair e até mesmo se sairia.. e se não saísse o que eu deixaria, para quem ficasse e ai rezei como um mantra todos os dias pra ressignificar minha identidade a frase de Dom Pedro Casaudaliga "Ser o que se é viver o que se prega ate as ultimas consequências".. Adorei a reflexão meu assessor Rogério Parabéns.

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  2. Meu amigo Rogério, nosso principal papel no momento Pós Pandemia é de reescrever a nossa história e do mundo, testemunhos como o seu serão muito importantes nesse processo.

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