sexta-feira, 12 de dezembro de 2025

Quando o Perdão Não Apaga a Memória

A comunidade de São Miguel sempre foi conhecida por seu sino azul, que ecoava pelas manhãs como um convite à vida. Antes mesmo do sol romper por completo o horizonte, Dona Estela já caminhava em direção à capela, abrindo as portas de madeira que rangiam como quem desperta devagar de um sono profundo. Era uma comunidade pequena, simples, marcada por laços fortes e, como toda pastoral viva, também por tensões que surgem quando o zelo ultrapassa a sensibilidade.

Numa dessas manhãs de quinta-feira, enquanto o cheiro do café recém-passado se misturava ao perfume do incenso da missa diária, Estela percebeu que Clara não estava no seu banco habitual. Clara era jovem, dedicada, sempre sorridente... Pelo menos até a semana anterior, quando uma discussão pública com Beatriz, coordenadora da Pastoral do Canto, abalou o clima da comunidade.

Tudo começou com a preparação da Missa da Padroeira. Beatriz, perfeccionista, exigia que cada ensaio fosse impecável. Clara, recém-chegada ao grupo, desafinou num trecho delicado do salmo. A correção de Beatriz, dura e feita diante de todos, feriu mais do que a voz de Clara. Palavras ríspidas foram trocadas, e o silêncio que se seguiu pesava mais que o som do sino azul.

Nos dias seguintes, Clara sumiu dos ensaios, das reuniões e, por fim, da missa. A comunidade murmurava. Alguns diziam que a jovem estava exagerando; outros, que Beatriz precisava aprender a falar com mais delicadeza. Estela, que já tinha visto muitos corações se ferirem por excesso de zelo, sabia que algo precisava ser feito.

Beatriz também não estava em paz. Continuava os ensaios, mas o vazio deixado por Clara a incomodava. À noite, enquanto guardava o violão, lembrava-se do olhar magoado da jovem. “Eu só queria que tudo ficasse bonito para a padroeira”, repetia para si mesma, tentando justificar o tom áspero. Mas a justificativa já não lhe trazia consolo.

Numa tarde de sábado, após a catequese, Estela procurou Clara em sua casa. Encontrou a jovem sentada no quintal, olhando para o chão como quem tenta decifrar respostas guardadas na terra.

- Minha filha, você faz falta - disse Estela, sentando-se ao lado dela.

Clara suspirou.

- Eu não consigo voltar, Estela. Eu até tentei rezar... mas cada vez que lembro do que ouvi... dói de novo. Eu sei que devo perdoar. Mas não consigo esquecer.

O sorriso de Estela veio suave, cheio de ternura de quem já acompanhou muitos recomeços.

- Quem foi que disse que perdoar é esquecer?

Clara ergueu os olhos, surpresa.

- Mas não é isso que Deus quer?

- Deus quer o coração limpo, não a memória vazia. A memória avisa onde doeu, para que a gente caminhe com mais prudência. O coração perdoa quando decide não devolver o mal. E isso, minha filha, você pode fazer mesmo lembrando.

As palavras de Estela ficaram ecoando como um salmo antigo. Clara respirou fundo. Não era ainda reconciliação (isso talvez precisasse de tempo), mas algo dentro dela se abriu.

No dia seguinte, Clara decidiu ir à missa. Quando entrou pela porta da capela, o sino azul tocou como quem celebra reencontros. Beatriz, que afinava o violão perto do altar, ficou imóvel ao vê-la. Não sabia o que fazer. Clara também não.

Durante a homilia, o padre João, que observava a comunidade com olhar de pastor atento, fez uma reflexão pontual e necessária.

- Meus irmãos, às vezes pensamos que perdoar é esquecer uma ofensa, como quem apaga um registro. Mas o Papa Francisco nos lembra que “perdoar não é esquecer, mas renunciar à força destrutiva do mal”. A memória pode continuar doendo, mas o coração pode estar livre para amar de novo. Por isso ele nos lembra que "fora do perdão não há esperança, fora do perdão não há paz". 

Clara sentiu um calor suave no peito. Olhou discretamente para Beatriz. Pela primeira vez desde a briga, a coordenadora parecia menor, humana, vulnerável. Seus olhos marejaram.

Quando a missa terminou, ninguém sabia quem se moveria primeiro. Foi então que Beatriz deu um passo tímido na direção de Clara. As duas pararam frente a frente. Não havia discurso ensaiado. Apenas verdade.

- Clara, eu errei - disse Beatriz, num fio de voz. - Não precisava ter falado daquele jeito. Eu... eu sinto muito. Tenho pensado nisso todos os dias.

Clara engoliu o nó na garganta.

- Eu ainda lembro. Mas não quero carregar isso comigo. Eu te perdoo.

Beatriz chorou. Não era apenas alívio. Era algo mais profundo: a compreensão de que o perdão recebido era um dom, e que não apagava automaticamente as consequências, mas reabria caminhos. Clara, por sua vez, soube que perdoar não significava confiar no mesmo instante, pois isso levaria tempo, mas o muro entre elas finalmente começava a ruir.

Ao saírem da igreja, o sino azul tocou uma última vez. Alguns disseram que era o vento. Outros, que era apenas o horário habitual. Mas Estela, com sua fé que enxerga sinais onde outros veem rotina, acreditava que era mais do que isso: um sussurro do céu, lembrando que o coração humano, mesmo ferido, pode aprender a recomeçar.

Ela sabia, no entanto, que nem todo reencontro acontece assim. Há histórias que demoram mais. Há feridas que pedem silêncio, tempo e cuidado. Há palavras que não voltam, gestos que se perdem, pontes que não se constroem. E há também comunidades que precisam aprender a acompanhar, escutar, esperar.

Mas naquela manhã em São Miguel, duas pessoas escolheram não o caminho ideal, mas o possível. Não foi perfeito, nem completo, mas foi verdadeiro. Um passo dado com coragem já é milagre suficiente.

E talvez seja por isso que o sino tenha tocado: não para anunciar que tudo se resolveu, mas para lembrar que, quando alguém decide tentar de novo, o céu sempre celebra. Porque em cada comunidade, por mais simples que seja, há sempre um sino esperando o momento certo de dizer: “Aqui, alguém escolheu amar de novo.”

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