quinta-feira, 28 de agosto de 2014

Quem é você nesta história?

Era tarde, quase noite. Sexta-feira. Pessoas apressadas nas ruas, mal se olhavam. Cheias de compromissos, pensamentos distantes de seus corpos, passos largos. Alguns se dirigiam aos ônibus, outros caminhavam para as garagens. Um tanto de gente, porém, caminhava sem dar indicação do destino.

José era um destes últimos. Filho de paraguaios, trazia em seu rosto os traços indígenas que reportavam à ancestralidade dos primeiros povos desta América Latina. Também estava apressado. Vinha do trabalho e para economizar alguns trocados, ia a pé para a faculdade. Conseguira bolsa de estudos. Não poderia faltar.

Para ganhar um tempo, resolve sair do itinerário comum e rotineiro e pegar um atalho por baixo do viaduto. Se ele tivesse seguido seu caminho natural, talvez esta história não precisaria ser contada. Alguns jovens apareceram do nada. Sob o viaduto, José foi abordado. Abordado, agredido, insultado, desfigurado.


Estes jovens questionaram a pressa, quiseram averiguar o conteúdo de sua mochila, indignaram-se com o status de estudante universitário. “Qualquer boliviano agora vem pro Brasil pra pegar nossas vagas na faculdade”. Apanhou seguidamente. Não adiantaram os apelos de que era brasileiro, trabalhador, que só queria ir embora. Sob o viaduto fora deixado meio que desacordado, num canto da calçada, com sangue em suas roupas rasgadas. 

Largado, ferido, desacordado. O estado de José era lastimável. Se ninguém fizesse algo, seu destino seria fatalmente a morte. Os jovens recuaram. Não levaram nada do jovem. Entraram no carro importado de um deles para seguir para outra “zoação”. Afinal, era sexta-feira.

No meio da madrugada, policiais passam de carro fazendo uma ronda rotineira. Observam o corpo caído. No entanto, não deram muita importância. Sob a fraca luz dos postes públicos, eles ignoraram aquele que fora confundido com um morador de rua, com suas roupas puídas, dormindo.

O dia nasceu e os trabalhadores do sábado vão para sua rotina semanal. Coletores de lixo passam correndo pelo corpo caído. Nenhum deles toma alguma atitude. Um deles chegou a reparar em José, mas passou adiante dele imaginando tratar-se de um jovem bêbado que levara a pior numa briga.

A manhã avançava. Duas jovens postulantes a entrar numa comunidade de vida e oração também passam pelo local. No entanto, não podem perder tempo ali com o jovem caído. Já estavam atrasadas para a missa.

Um jovem da Pastoral da Juventude resolveu cortar caminho por baixo do viaduto. Seus pensamentos eram de lamentação. “Por que resolveram marcar esta reunião diocesana tão cedo num sábado”. Passou tão atarefado em seus pensamentos que nem notou José por ali.

Estávamos no meio da manhã e outro jovem, tido como revolucionário, conclamava as multidões a lutarem em favor dos excluídos através de postagens nas redes sociais. E outro blogueiro preparava uma nova postagem emocionante para que a galera se motivasse a lutar por um mundo mais justo e solidário. Ambos moravam no mesmo prédio, vizinho ao viaduto. Não se conheciam pessoalmente. Ambos se digladiavam pelas vias “internéticas”. Pouco ou quase nunca passavam pela via abaixo do viaduto.

Acabada a missa, o padre passou por ali também. Mas a pressa era enorme. Tinha se empolgado tanto na homilia que acabara por estar atrasado para o almoço na casa de um fiel “importante”.

Era quase uma hora da tarde. Uma jovem negra que voltava de uma balada LGBT resolveu ganhar tempo ao passar por baixo do viaduto. Não teve como não reparar naquele corpo caído, ensanguentado e com as roupas rasgadas. Sentiu compaixão. Aproximou-se dele. Tentou, em vão, acordá-lo. Voltou para o salão onde havia ocorrido a balada. Um amigo e uma amiga retornaram com ela de carro. Colocaram José no banco de trás e o levaram para um pronto socorro de um hospital particular. Lá, os amigos deixaram a jovem e José. Ela deu encaminhamento no caso, pagou as despesas imediatas e disse que voltaria depois para ver como ele estava.

No fim da tarde daquele sábado, ela voltou. José estava na enfermaria. Viu que ele estava melhor. Precisaria ficar até domingo para observações. Na tarde do domingo, ela novamente o visitou. Ele tomou todas as medicações necessárias e fez os exames que eram precisos. Eles conversaram e ela soube de toda sua história. Ele teve alta médica.  Ela pagou-lhe um táxi para voltar para casa. Eles nunca mais se reencontraram.

PS. Obrigado, Motta, novamente, pela imagem construída.

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